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O que é a Tradição da Igreja.


Já escrevemos bastante sobre o problema da Sola Scriptura, mas ainda não dissemos nada a respeito do que sobra: a Tradição e o Magistério da Igreja. Pelo menos não reservamos um artigo específico sobre este assunto. Então, façamos isso agora.

Primeiramente conceituemos: o que é uma tradição? Talvez ela possa ser definida como aquilo que, no decorrer da história, foi sendo culturalmente acumulado, seja bom ou ruim. Este condensado será um símbolo daquela história, trará o valor do vivido e, ao mesmo tempo, será um fator necessário à compreensão do presente. Desse modo, podemos falar da tradição na música, ou nas letras, ou nas ciências, e também nas religiões. Não há dificuldade de entender o que alguém quer dizer quando fala de tradição budista, ou de tradição islâmica, etc. Logo, não haverá também problemas quando se disser "tradição cristã".

Uma das características da tradição é que ela em geral inclui escritos. Os escritos, contudo, registram apenas uma parte da tradição, pois esta não cessa no momento em que é condensada em signos verbais, enquanto os escritos só podem tratar do já ocorrido até o momento em que é redigido. Os escritos são, portanto, uma parte da tradição - e não o contrário - e, como tais, devem manter-se abertos à continuidade desta tradição. Eles então guardam duas funções: exprimir e estabelecer as bases e as verdades que se manterão as mesmas por baixo das mudanças ulteriores - estas verdades são o substrato da tradição -, e orientar tais mudanças para que estas se dêem dentro de justos limites já evidenciados pelos escritos, de modo que o que se desenvolve não deixe de ser o que é, isto é, não perca a sua natureza. Contudo, é contrário à própria razão de ser do escrito que ele se feche em si mesmo, não admitindo as transformações posteriores nem a compreensão que se aperfeiçoa no decorrer dos tempos. Portanto, um escrito que exclua tudo o mais se torna autocontraditório, pois ele mesmo é fruto já de uma tradição anterior.  - E, como veremos, isto é particularmente verdadeiro no cristianismo. - A própria literatura, tradição transcrita que é, será melhor compreendida posteriormente, desde que se mantenha aberta ao desenvolvimento que é natural a qualquer organismo dotado de vida, assim como é por uma árvore que se conhece melhor aquilo que já estava posto, de modo latente, na semente. 

Observemos agora especificamente o caso do cristianismo.

Tudo começa com um fato, não com um registro. O registro é necessariamente posterior ao fato. Logo, o registro não pode esgotar o fato. Isto é uma intuição básica. É uma necessidade lógica. O fato de que se trata é a Encarnação do Cristo. Deus se fez homem, adentrou no tempo, e viveu conosco. Aqueles que foram testemunhas da Sua vida, impactados com a Sua presença, poderão, depois, registrar algo disso. Mas este algo é sempre só algo. E este registro é parte da divulgação do fato: a parte escrita. Fica, ainda, a parte falada, que é anterior à escrita e segue mesmo depois dela. Não havia nenhuma intenção, nos escritores cristãos, de restringir a notícia do cristianismo às suas cartas e biografias do Cristo. Tanto que estas coisas só foram feitas anos e anos depois do evento da Ressurreição. No início, portanto, toda a divulgação do Evangelho era feita de viva voz. E nada é mais natural, pois não se supunha que o cristianismo perdesse a sua vitalidade, sendo necessário ir procurar as suas fontes apenas nos primeiros escritos. Havia a clara consciência de que a Igreja que se iniciava, chamada por Paulo de "coluna e sustentáculo da Verdade" (1Tim 3,15) perduraria por todos os séculos, até o dia do Juízo, pois tal tinha sido a promessa do seu Fundador. Logo, o ensino das verdades de Fé viria por meio desta Igreja.

Vamos a algumas provas de que os escritores bíblicos não tinham a intenção de consumar a Fé cristã no registro bíblico:

"Fez Jesus, na presença dos Seus discípulos, ainda muitos outros milagres que não estão escritos neste livro. (Jo 20, 30) - Logo, nem tudo está relatado.

"Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e se cada uma das quais fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem." (Jo 21:25) - Logo, nem tudo está relatado.

Sobre as más tradições, as "tradições de homens", referidas por Jesus em Mc 7,6-8, são o óbvio resquício negativo de uma história composta por homens feridos pela concupiscência. É óbvio que qualquer história humana terá seus acúmulos ruins, mas isso não tira a razão de ser das tradições como um todo. Além do que, ao referir-se a "tradições de homens", Nosso Senhor as contrapõe com outro tipo de tradições: as divinas.

Continuemos.

"Eu vos felicito por vos lembrardes de mim em toda ocasião e conservardes as tradições tais como eu vo-las transmiti." (1Cor 11,2) - Paulo diz claramente aqui para se conservarem as tradições que ele transmitiu. 

"Sim, pois, irmãos, ficai inabaláveis e guardai firmemente as tradições que vos ensinamos, de viva voz ou por carta." (2Ts 2,15) - Aqui Paulo fala mais uma vez das tradições, ordena guardá-las, e distingue os dois modos de se divulgar a Fé cristã: a) de viva voz; b) por carta. E ele os equipara, pois ambos têm valor porque procedem de quem tem autoridade, não pelo fato de serem escritos ou ditos. A fonte da credibilidade da divulgação cristã não vem, portanto, do modo como esta mensagem chegou a nós, mas por meio de quem. A bíblia, assim, só é o que é porque pressupõe uma autoridade. Se a autoridade é pressuposta, ela é necessariamente anterior, é a causa da credibilidade da Escritura, e não tem razão de esgotar-se nela.

Lucas, no início do livro dos Atos, capítulo 1, versículo 3, diz que Jesus ficou aparecendo aos discípulos por ainda 40 dias e nestas aparições Ele lhes falava das coisas concernentes ao Reino de Deus. É importante perceber a extrema importância deste ensino pós-ressurreição.

O escritor católico Karl Adam descreve em vivos termos a mudança no interior dos Apóstolos operada pela Ressurreição de Cristo e que causou neles uma ressignificação profunda de toda a sua compreensão das realidades evangélicas. Eis alguns excertos:

"Basta comparar este conteúdo das experiências pascais dos discípulos com o que até então criam sobre Jesus, para verificar que essas experiências lhes abriram perspectivas espirituais absolutamente novas: tinham-nas pressentido, tinham-nas percebido num momento ou noutro, mas nunca tinham chegado a convertê-las em fé viva. Agora, essas novas concepções ultrapassam de tal modo os antigos sonhos que estes de maneira nenhuma as conseguem explicar. (...) [Isso permitiu-lhes] a experiência de uma realidade que desabava, por assim dizer, sobre eles, como algo novo, inesperado e violento, que tudo destrói. Efetivamente, essa experiência destruiu neles o 'homem velho.'" (Jesus Cristo, 1986, p. 146)

E ainda:

"À medida que, durante esses quarenta dias, Cristo ressuscitado ia estando com eles e 'falando do Reino de Deus' (At 1,3), o seu Evangelho ia perdendo cada vez mais, aos olhos deles, todos os invólucros terrenos, todos os traços temporais, todas as estreitezas judaicas." (Ibidem, p. 148)

Embora o evento mesmo da Ressurreição fosse o suficiente para gerar, por si só, uma grande transformação no interior dos apóstolos, é óbvio que, agora, as palavras do Cristo ressurrecto tinham um poder absolutamente novo sobre eles e, portanto, eram essencialíssimas. Contudo, vemos pelo próprio Lucas que estes ensinos não foram redigidos. No entanto, não é de se crer que eles se perderiam. É óbvio que foram incorporados na vida concreta da Igreja e expressos sobretudo pela Liturgia.

O próprio Jesus, na Sua despedida dos Apóstolos, afirma que nem tudo poderia ser conhecido até ali, mas a formação da Igreja seguiria ulteriormente:

"Muitas coisas tenho ainda a dizer-vos, mas não as podeis suportar agora. Quando vier o Paráclito, o Espírito da Verdade, vos ensinará toda a verdade." (Jo 16, 12-13). Embora grande parte disso tenha ocorrido no Pentecostes, quando o Espírito abriu o entendimento aos apóstolos para que entendessem tudo, a formação da Igreja seguiria pelo correr dos séculos, e este mesmo Espírito que havia iluminado os primeiros seguiria iluminando os demais, revelando-lhes sempre maiores profundidades e novas dimensões sobre a verdade imutável. Basta correr os olhos sobre toda a literatura dos Padres da Igreja para ter um vislumbre de novas profundidades antes insuspeitadas de todo e que, não obstante, já estavam latentes nos relatos já conhecidos de sempre. Este desenvolvimento, essa progressiva conscientização da Igreja com respeito a si mesma e a Deus, é própria de algo vivo, que pulsa, e que não está encerrada apenas em páginas escritas.

Por Tradição da Igreja quer-se referir ao ensinamento oral que, como vimos, Paulo ordena guardar. Lucas, no livro dos Atos, atribui a Jesus uma frase que não está nos Evangelhos: "Há maior felicidade em dar do que em receber." (At 20,35) Somente isto já basta para demonstrar como a Bíblia é essencialmente aberta a outros registros, desde que estes não estejam em contradição com ela, pois, de fato, a Bíblia, dentre os registros escritos, goza de absoluta primazia ao ponto de ser dita inerrante. E isto ocorre porque são fontes primárias provindas daqueles que foram testemunhas da ressurreição de Cristo. Com a morte do último Apóstolo, João, nas proximidades do ano 100, encerra-se o período da Revelação e inicia-se o período Dogmático em que a Igreja, agora, se debruçará sobre o ensino que lhe foi dado e cuidará dele para que não se corrompa. A prova de fogo que qualquer crítico poderia - e deveria - fazer seria estudar como era a Igreja Primitiva, como eram as suas práticas, e no que ela cria. Anos e anos de hermenêutica e debates deram aos relatos bíblicos mil possibilidades de tradução e interpretação. Nada melhor, então, para se voltar ao sentido original dos textos, do que dar uma olhada na tradição viva que então animava a Igreja, na sua pulsação vital do dia a dia, na sua vivência comum dos Evangelhos, na celebração dos seus mistérios, na organização que ela tomou já no final do primeiro século.

Lembremos que os cristãos só terão o compêndio da Escritura no século IV - quatro séculos se passaram, então, de cristianismo pujante sem que houvesse um cânon definido e sem que lhe faltassem meios para o ensino e divulgação da Fé. Falar, então, da Bíblia como única regra de Fé é, de todo, sem sentido; é algo a que falta respaldo lógico e histórico. A própria escolha dos livros canônicos do Novo Testamento se deu no contexto da Tradição da Igreja que, então reunida, os definiu.

Neste sentido, o Pe. Matthias Gaudron escreve:

"A Tradição é a primeira das duas Fontes da Revelação: pela antiguidade (os Apóstolos começaram por pregar); pela plenitude (estando ela mesma na origem da Escritura, a Tradição contém todas as Verdades Reveladas por Deus) e pela suficiência (a Tradição não tem necessidade da Escritura para fundamentar sua autoridade divina; ao contrário, é ela mesma que dá a lista dos livros inspirados por Deus e que permite conhecer seu sentido autêntico. (...) Os protestantes que querem reconhecer somente a Bíblia como Fonte da Fé, devem, ao menos nisso, referir-se à Tradição, pois é dela somente que eles recebem a Sagrada Escritura." (2011, p.21)

E continua:

"Cristo não quis falar somente aos seus contemporâneos da Palestina, mas a todos os homens de todas as épocas e de todas as regiões da Terra. Ora, sua doutrina não poderia ser conservada sem alteração, no curso dos séculos, sem uma autoridade competente para resolver as disputas vindouras. Logo, essa autoridade foi instituída." (Ibidem, p. 22)

É preciso ainda repetir que a Bíblia mesmo condena o livre exame luterano, que é a idéia de que bastaria a interpretação pessoal da Bíblia para que o Espírito Santo nos iluminasse a seu respeito. Não fosse suficiente a absoluta negação disso na ordem dos fatos - pois as maiores contradições foram defendidas com base nisso, o que não deixa de ser um modo indireto de blasfêmia -, o próprio Pedro nos adverte: 

"Antes de tudo, sabei que nenhuma profecia da Escritura é de interpretação particular. Pois não foi por vontade humana que alguma profecia veio; mas incitados pelo Espírito Santo que uns homens falaram da parte de Deus" (2Pe 1, 20-21)

O mesmo Pedro critica os que lêem as cartas de Paulo e as distorcem, "para a própria ruína", admitindo que há nelas "coisas difíceis de entender". (Cf. 2Pe 3,16)

Deus já havia dito claramente: "os meus pensamentos não são como os vosso pensamentos." Lembremos das confusões absurdas que os Apóstolos faziam das palavras do Cristo - voltemos a mente ao "fermento dos fariseus" ou às "espadas", para ficar em duas das mais cômicas. Portanto, é óbvio que Deus, querendo falar aos homens, não escreveria apenas um texto passível de mil interpretações e equívocos, mas deixaria alguém que entregasse o modo correcto de compreensão desses escritos. Neste sentido, escrevia com justeza Gustavo Corção:

"...o que nos choca na atitude protestante é o seu esquisito modo de estimar a Bíblia. Nenhum de nós que escreve gostaria de sofrer o tratamento a que o protestante submete o Espírito Santo. Nenhum de nós se alegra de ser livremente interpretado; e podemos até dizer que o nosso mais acabrunhante sentimento vem do elogio equivocado. André Gide disse uma vez a um admirador apressado que, por favor, não o compreendesse tão facilmente. Pois bem, o Deus ciumento de sua identidade, que martela em nossos ouvidos a sua terrível definição "Eu sou aquele que sou", e que nos recomenda insistentemente que guardemos a doutrina, é tratado como um acomodado personagem que nos dissesse com bonomia: Aqui está a minha revelação, estejam a gosto, e façam dela o que quiserem." (1951)

Terminemos dizendo que, para católicos, este assunto é óbvio, pois a Fé os inclina para esta posição. Para protestantes, o assunto fica algo truncado, pois ele lhes move o senso de defesa. O único meio, portanto, de analisar o assunto do modo mais imparcial possível é distanciar-se dele imaginativamente e observá-lo como um não cristão o faria. É só então que, longe dos laços afetivos que distorcem a visão, surgirá a força - ou a fraqueza - dos argumentos acima usados. 

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ADAM, Karl. Jesus Cristo. São Paulo: Quadrante, 1986.

CORÇÃO, Gustavo. A visibilidade da Igreja. A Ordem, 1951. Disponível aqui.

GAUDRON, Pe. Matthias. Catecismo católico da crise na Igreja. Rio de Janeiro: Permanência, 2011.


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