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Homilia do Cardeal Ratzinger sobre S. José



Pude ver há pouco, na casa de uns amigos, uma imagem de São José que me fez pensar. É um baixo-relevo que procede de um retábulo português da época barroca, e que retrata a noite anterior à fuga para o Egito.  Vê-se uma grande tenda, aberta; do alto, aproxima-se um anjo, e na abertura da tenda está deitado José - dormindo, mas vestido como um peregrino, um viajante, calçado de grandes botas de cano alto, como as que se usam em duras caminhadas. Aquilo que à primeira vista nos pode parecer um pouco ingênuo - que esse José adormecido seja ao mesmo tempo um viajante -, é na verdade o que confere profundidade à imagem e nos permite compreender alguma coisa da messagem que encerra.

Coração Aberto

José dorme, é verdade, mas ao mesmo tempo está pronto para escutar a voz do anjo. Irradia, por assim dizer, aquilo que diz o Cântico dos Cânticos: Eu dormia, mas o meu coração velava (Ct 5,2). Os sentidos repousam, mas o fundo da alma está aberto. A tenda aberta faz-se imagem do homem que é capaz de ouvir no profundo, para dentro e para o alto; que está suficientemente aberto para que a vida de Deus e dos seus anjos consiga penetrar até os ouvidos do seu coração. É nessa profundidade que a alma de todo o homem toca a Deus, e é a partir de dentro que Ele quer falar-nos a cada um de nós, é ali que está próximo de cada um.

No entanto, costumamos estar atulhados de negócios, de preocupações, de esperanças e desejos de todo o tipo. Estamos tão repletos das imagens e urgências que o dia de hoje nos traz, que, por mais despertos que estejamos exteriormente, adormecemos interiormente e já não somos capazes de ouvir a voz que fala no nosso íntimo. A alma encontra-se, por assim dizer, tão obstruída de lixo, são tantas as muralhas que ergueu contra a proximidade de Deus, que o Senhor e a sua voz não conseguem chegar até nós.

Ao longo da Idade Moderna, deu-se uma evolução que nos tornou cada vez mais capazes de dominar o mundo e de fazer das coisas o que queremos; mas esse progresso do nosso poder sobre as coisas, do nosso conhecimento quanto ao que podemos fazer com elas, levou ao mesmo tempo a uma redução da nossa sensibilidade, de forma que o nosso universo se tornou unidimensional. Estamos dominados pelas nossas coisas, por aquilo que podemos tomar nas mãos e usar para alguma finalidade útil. No fim das contas, acabamos por não olhar senão para nós mesmos e já não perscrutamos as profundezas da Criação, que continua - hoje como sempre - a falar-nos da beleza e da bondade de Deus.

José adormecido, mas ao mesmo tempo pronto para ouvir para dentro e para o alto é o homem do recolhimento interior e da prontidão. A tenda da sua vida está aberta, e é assim que ele nos fala e nos convida a afastar-nos um pouco do vozerio dos sentidos para recuperarmos o recolhimento, para aprendermos a olhar para dentro e para o alto, a fim de que Deus possa voltar a tocar a nossa alma e falar-lhe. Penso que a Quaresma é um período especialmente adequado para que pratiquemos esse afastamento das preocupações cotidianas que nos oprimem e nos voltemos para o nosso íntimo.

Perder-se para encontrar-se

Há um segundo ponto. José está, por assim dizer, pronto para erguer-se de um salto. Está pronto para despertar e fazer o que Deus lhe manda. E aqui toca o centro da vida de Nossa Senhora, presente na resposta que Ela deu no momento decisivo da sua existência: "Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra" (Lc 1,38). Essas palavras podem igualmente aplicar-se a José, à sua prontidão em erguer-se: "Eis o teu escravo! Faz de mim o que quiseres". Como também se podem aplicar as da resposta de Isaías, no momento em que é chamado por Deus: "Senhor, aqui estou. Envia-me!" (Is 6,8). São palavras que impregnarão daí por diante toda a sua vida.

Mas há ainda outro texto da Sagrada Escritura de que nos lembramos neste momento - o anúncio que Jesus faz a Pedro: "Serás levado para onde não queres ir" (Jo 21,10). José, o homem da prontidão, fez dessas palavras, voluntariamente, a medida da sua vida. Estava à disposição para deixar-se levar também para onde não queria ir. A sua vida inteira é uma seqüência de docilidades, de se deixar conduzir.

Tudo começou com esse primeiro encontro em que o Anjo o introduziu no mistério da maternidade divina de Maria, no mistério do Messias. Interrompendo abruptamente a vida silenciosa, humilde e serena que ele pretendia levar, lançou-o na aventura da vida de Deus no meio dos homens. Bem se pode dizer que o arrebatou para junto da sarça ardente (cfr. Ex 3,1-22), para o encontro imediato com o mistério do qual devia ser testemunha e copartícipe. E logo se revelou o que isso significava: o nascimento do Messias não poderia ocorrer em Nazaré. José teve de partir para Belém, a cidade de Davi, mas também não seria ali que o Messias nasceria, porque os seus não o receberam (Jo 1,11). O mistério da Cruz ergueu-se sobre essa hora, e o Senhor teve de nascer num estábulo, fora da cidade.

A seguir, veio o novo encontro com o Anjo, que levou José ao exílio no Egito (Mt 2,13-15). Ali compartilharia o destino dos desabrigados, dos sem-lar, dos refugiados, dos estrangeiros que têm de procurar um lugar para si e para os seus. E sobre o retorno à terra de origem pendia novamente uma ameaça...

Mais tarde, veio o episódio doloroso dos três dias de ausência de Jesus (cfr. Lc 2,41-52), que faziam pressagiar o mistério dos três dias que decorreriam entre a Cru e a Ressurreição, dias de vazio, de ausência do Senhor. E assim como o ressuscitado não havia de simplesmente voltar à sua antiga vida, ao convívio com os seus, mas disse: "Não me retenhas [...]. Subo para o meu Pai. Só poderás estar comigo se quiseres subir tu também" (cfr. Jo 20,17), assim agora, quando Jesus foi encontrado no Templo, mostraram-se claramente a distância, a gravidade e a altura do Mistério, quando Jesus Menino pareceu pôr José no seu lugar, dirigindo-lhe ao mesmo tempo o olhar para o alto: "Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?" (Lc 2,19). É como se lhe dissesse: "Tu não te chamarás pai; és apenas o tutor, o homem a quem está confiada a tarefa de me guardar, mas nela foi confiado à tua guarda o mistério da Encarnação".

Por fim, José morreria sem poder ver manifestada a missão de Jesus. Tudo, todos os seus sofrimentos e esperanças, permaneceriam ocultos no silêncio. A sua vida não foi uma vida de auto-afirmação, em que o homem procura desenvolver ao máximo as suas potencialidades ou realizar tudo o que pretende. Não foi uma vida de auto-afirmação, mas de autonegação, de renúncia: "serás levado para onde não queres ir".

José não tomou posse da sua vida, deu-a. Não realizou um plano que tivesse elaborado com luzes próprias e posto em prática com a sua vontade, mas entregou-se às mãos dos desígnios divinos, entregou a sua vontade à vontade de outro, a uma vontade maior, à própria Vontade divina. Pois é exatamente quando isso acontece, quando o homem se perde a si mesmo, que ele se encontra a si mesmo.

Sim, é só perdendo-nos a nós mesmos, dando-nos nós mesmos, que nos recebemos. Quando isso acontece, não é a nossa vontade que prevalece, mas a de Deus: "Não se faça a minha vontade, e sim a tua" (Lc 22,42). Quando se cumpre aquilo que pedimos - "seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu" -, faz-se na terra uma pequena parte do céu, pois então a terra é como o céu. Assim José, o homem que se perde a si mesmo, o homem que renuncia, que por assim dizer segue por antecipação o Crucificado, mostra-nos o caminho da fidelidade, o caminho da ressurreição e da vida.

Sob o sinal de Abraão

Há ainda um terceiro ponto. Esse José está vestido como um peregrino. Desde o momento em que soube do Mistério, a sua existência foi um estar a caminho, uma peregrinação. Está sob o sinal de Abraão: porque a história de Deus, a história de Deus entre os homens, que é a história dos seus escolhidos, começa com a vocação do pai comum: "Deixa a tua terra e sê um estrangeiro" (cfr. Gn 12,1). José prefigura a existência cristã porque revive a existência de Abraão. A primeira Epístola de São Pedro e a Epístola aos Hebreus insistem fortemente nesta verdade: como cristãos, dizem-nos os Apóstolos, devemos considerar-nos estrangeiros e peregrinos, simples hóspedes (cfr 1Pe 17;2,11) neste mundo. Porque a nossa morada ou, como diz São Paulo na Carta aos Filipenses, a nossa cidade está nos céus (Fil 3,20)

Hoje já não nos agrada que nos falem do céu, porque achamos que isso poderia afastar-nos dos nossos deveres terrenos, alienar-nos do mundo. Pensamos que devemos não só transformar a terra num paraíso, manter os nossos olhos cravados nela, mas até dedicar-lhe por inteiro o nosso coração e as nossas mãos. Mas é precisamente ao fazê-lo que destruímos a Criação. Pois os anseios do homem, por assim dizer a seta dos seus anelos, apontam para o infinito. E continua a ser verdade, hoje mais do que nunca, que nada senão Deus é capaz de saciar o homem. Fomos criados de tal maneira que todas as coisas finitas são insuficientes, que precisamos sempre de mais: de um Amor infinito, de uma Beleza e Verdade ilimitadas.

Este desejo não pode ser sufocado em nós, mas podemos perder de vista a meta. E então procuramos extrair o infinito, a plenitude infinita, do finito. Queremos um céu na terra, esperamos e exigimos tudo dela, desta vida e desta sociedade. E na medida em que queremos extrair o infinito do finito, destroçamos a terra e tornamos impossível a convivência numa sociedade ordenada, porque os outros nos parecem obstáculos ou ameaças, já que tiram da vida e do mundo um pedaço que no fundo queremos para nós mesmos.

Só quando aprendermos a olhar novamente também para o céu que e a terra voltará a iluminar-se. Só quando revivermos em nós a grandeza da esperança numa vida eterna com Deus, quando voltarmos a ser peregrinos rumo à eternidade e não nos agarrarmos a esta terra, só então a nossa esperança voltará a brilhar também neste mundo e lhe comunicará a esperança e a paz.

Diante disto, agradeçamos a Deus neste dia por esse santo do recolhimento, da prontidão, da obediência, da entrega a Ele, da peregrinação confiada nas promessas divinas, e do serviço devotado também a este mundo. Agradeçamos por esta solenidade em que vemos como também hoje os homens se abrem uma e outra vez à vontade de Deus, ouvem a sua chamada e partem para onde Ele quiser conduzi-los. E peçamos a graça de que nos seja concedida essa atitude de vigilância e prontidão, a graça de que a plenitude dessa esperança penetre a nossa vida e nos conduza para Deus, que é o nosso autêntico destino na comunhão da vida eterna.

Joseph Ratzinger, Homilias Sobre os Santos.
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